UMA ANÁLISE DO RACISMO BRASILEIRO ATRAVÉS DAS LENTES DE NANCY FRASER:
REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO
UMA ANÁLISE DO RACISMO BRASILEIRO ATRAVÉS DAS LENTES DE NANCY FRASER:
REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO
Antonio Miranda[1]
antoniomirandasilva33@gmail.com
Ian Novaes Flaviano[2]
ian53@ufmg.br
Seu João Xavier, em Belo Horizonte
23/06/2025 às 09h00
Palavras-chaves: Racismo; Escravidão; Redistribuição; Reconhecimento; Movimentos Sociais.
O presente ensaio analisa os impactos da escravidão na desigualdade social presente no Brasil e verifica a hipótese de que há uma falta de propostas para combater as injustiças raciais causadas por esse sistema por parte dos movimentos de esquerda brasileiros do século XX e, em alguns casos, do XXI, à luz do texto Justiça social, redistribuição e reconhecimento, da intelectual Nancy Fraser.
Nancy Fraser, ao analisar o caso estadunidense de mudança de paradigmas filosóficos, da redistribuição ao reconhecimento, entre os pensadores de esquerda (Fraser, 2003), acabou por indiretamente retratar o caso brasileiro, principalmente quando se trata das pessoas negras.
No caso brasileiro, viu-se ao longo da história uma luta, por parte dos movimentos e pensadores de esquerda, pela redistribuição, vista na obra de Caio Prado Júnior, que aborda a questão da colonização do Brasil por Portugal, mas que não trata do enfrentamento ao racismo como solução, e de Theotônio dos Santos, que tem uma teoria centrada na dependência (Júnior, 2011; Santos, 2015). Os movimentos sociais também adotavam a mesma abordagem de busca pela redistribuição e, durante os anos de 1964 a 1985, do fim do regime militar, esqueciam-se também da importante questão negra.
Consequentemente, esses movimentos e pensadores, que tinham como coletividade típico-ideal a classe trabalhadora branca e masculina, em suas propostas para a solução da desigualdade, acabam por esquecer o combate ao racismo estrutural brasileiro e como esse combate é fundamental para a redução da desigualdade (Fraser, 2003).
Isto é, assim como no caso estadunidense, esses movimentos e pensadores do século XX debruçaram-se sobre a injustiça socioeconômica e ignoraram a injustiça “cultural”, que impacta profundamente o Brasil (Fraser, 2003).
Fraser, em sua obra, diagnostica a ascensão das políticas de reconhecimento nos Estados Unidos a partir da década de 1990 e início dos anos 2000, graças à mudança de paradigmas, como o fim do Estado de Bem-Estar Social e a ascensão do neoliberalismo, juntamente com o fim do socialismo real, com a queda da União Soviética. Essas mudanças propiciaram o surgimento desses “novos movimentos sociais”, formados por comunidades negras, LGBTQIAP+ e feministas, que veem o reconhecimento como objeto central de suas lutas (Fraser, 2003).
Para esses novos movimentos, não basta apenas redistribuir; é necessário reconhecer também, principalmente porque as pessoas negras são coletividades bivalentes pragmáticas, ou seja, são atravessadas pelas dimensões político-econômicas e cultural-valorativas e, portanto, necessitam de reconhecimento e redistribuição, pois apenas um desses elementos não seria suficiente para sanar os problemas enfrentados (Fraser, 2003).
Assim como no caso americano, no Brasil vê-se também a ascensão de movimentos negros, que já existiam há bastante tempo, mas que ganham destaque ainda maior, também a partir dos anos 2000, no discurso e nas lutas dos movimentos de esquerda, apesar de institucionalmente as mudanças ainda serem bastante fracas.
Brasil Estruturado no Racismo
Segundo Nancy Fraser, o reconhecimento, por parte do Estado, da existência de grupos historicamente marginalizados e subalternizados, por ele mesmo, bem como pela sociedade, como, por exemplo, a população negra do Brasil, em decorrência dos séculos de escravização, faz com que pessoas negras ainda hoje sejam atravessadas por diversos índices de desigualdade, principalmente quando comparadas com pessoas brancas. Esse ponto de partida é essencial para que mudanças eficazes, por meio de políticas públicas, sejam implementadas a fim de proporcionar dignidade e segurança para pessoas em vulnerabilidade.
Neste sentido, o reconhecimento torna-se fundamental para mudar a condição política, socioeconômica, cultural, trabalhista, dentre outras, às quais as populações negro-brasileiras estão subjugadas. O reconhecimento, segundo Fraser, é muito importante; todavia, ele sozinho não basta. Para que grupos sociais que foram e ainda são, em grande medida, prejudicados pelo sistema econômico vigente sejam valorizados, é necessário um segundo ato: a redistribuição de renda para essas pessoas.
O racismo institucional, subjacente às leis promulgadas no Brasil, impediu as pessoas negras de ascender economicamente. As elites brancas e escravocratas, por meio de sucessivas medidas legislativas, impediram que os negros exercessem suas cidadanias de forma plena. Neste sentido, um exemplo desse racismo estrutural é a primeira lei de educação promulgada no Brasil. Esta lei, nº 1, de 14 de janeiro de 1837, dizia: “São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas.
Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos.”
Esta ação, com o caminho pavimentado para impedir que pessoas negras participassem do sufrágio, em 1881, sete anos antes da abolição, culminou na promulgação da Lei Saraiva (Decreto nº 3.029), que passou a exigir alfabetização para o exercício do voto. Percebe-se aqui que ambas as leis se completam e formam um sistema político verticalizado, no qual as elites, munidas de seus privilégios e vantagens econômicas e políticas, contribuíram diretamente para a criação de uma sociedade iletrada e incapaz de agir socialmente a partir das práticas de leitura e escrita. Os resultados dessas leis ainda hoje podem ser percebidos quando analisados dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que afirmam que a porcentagem de negros analfabetos é três vezes maior do que a de brancos.
Outra necropolítica (Mbembe, 2018) implementada pelo Estado brasileiro foi a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que proibia pessoas negras de serem proprietárias de terras, diferentemente das políticas públicas desenvolvidas à época pelo Estado, que garantiam moradia, educação e trabalho remunerado para os imigrantes brancos europeus, que vieram ocupar os postos de trabalho nas monoculturas antes desempenhados por pessoas negras escravizadas, concomitantemente ao plano de embranquecimento do país.
O direito constitucional à propriedade é um dos mais assegurados e respeitados pelo Estado brasileiro – que, embora tenha um território continental, ainda hoje se recusa a realizar uma reforma agrária, apartando milhões de pessoas do direito à moradia, também previsto no art. 6º da Constituição Federal. O empenho do Estado em proteger e assegurar que as elites do Brasil tenham seus bens protegidos parece não ser o mesmo aplicado no desenvolvimento e na aplicação de políticas públicas para prover moradia digna aos milhões de cidadãos e cidadãs, em sua maioria negros, que não possuem casa própria. Segundo o IBGE (2023), mais de 6,5 milhões de brasileiros vivem em habitações inadequadas, enquanto estima-se que existam cerca de 7 milhões de imóveis vazios em todo o país.
Vale dizer que, após a Lei Áurea, a Lei da Vadiagem nº 2.072/1890 entrou em vigor apenas dois anos após a abolição da escravidão. Essa, criminalizava práticas culturais negras, como o samba e a capoeira, levando à prisão e marginalização de inúmeros homens e mulheres negras que apenas expressavam suas subjetividades por meio da arte, evidenciando uma movimentação institucional para invisibilizar, marginalizar e subalternizar pessoas negras.
Para Fraser, o reconhecimento, bem como a redistribuição, necessitam de uma estratégia eficaz e inteligente para serem implementados; por consequência, posteriormente ao reconhecimento e à redistribuição, a autora propõe, em um terceiro movimento, o “como”. Nessa perspectiva, Fraser afirma que as medidas a serem tomadas com o intuito de alcançar reconhecimento social e redistribuição de renda não podem ser paliativas; elas precisam impactar substancialmente, de forma positiva, a vida desses grupos vulneráveis, respeitando suas subjetividades, ao passo que essas pessoas passem a participar das áreas que antes, devido à exclusão social, lhes eram impedidas.
Segundo Miranda (2025), os atos institucionais promulgados mediante as distintas leis que impediram as pessoas negras de exercerem plenamente suas cidadanias culminaram no principal fator de desigualdade social vivenciado no Brasil atualmente: o racismo. Embora a Constituição Federal do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, tenha trazido avanços, ela não reconhece e não assume os séculos de escravização de pessoas negras, bem como as consequências causadas pelo racismo e pela escravidão presentes no Brasil.
Ainda segundo Miranda (2025), o processo de redemocratização brasileiro não foi pautado no combate ao racismo de forma eficaz e, embora o movimento negro estivesse presente na Constituinte de 1988, a representatividade parlamentar no Congresso Nacional era praticamente inexistente, consequência direta das leis que apartaram as pessoas negras de participarem do sufrágio e também de expressarem suas cidadanias plenamente. Dessa forma, mais uma vez, cidadãs e cidadãos negros não tiveram o direito e a oportunidade de propor medidas constitucionais que pudessem redemocratizar o Brasil tendo como um dos princípios o combate ao racismo.
Ora, se os analfabetos eram proibidos de votar e serem votados pelas constituições e cartas constitucionais anteriores a 1988, e a maior parcela da população negra era analfabeta, aspecto que só foi revogado recentemente, há 40 anos, como este grupo, embora maioria demográfica, poderia ter representatividade nos cargos de destaque, de decisão e representatividade política no parlamento brasileiro?
Portanto, dialogando com Fraser, Miranda (2025) discute que a redemocratização brasileira não teve como alicerce o reconhecimento das contribuições de pessoas negras para o desenvolvimento do país; não há o reconhecimento do racismo como principal fator de desigualdade, ainda hoje no Brasil; e também não houve redistribuição de renda por meio de políticas públicas eficazes que de fato mudassem a condição socioeconômica da maior parte da população brasileira.
Em suma, o presente ensaio evidenciou que a desigualdade social no Brasil está intrinsecamente ligada ao legado da escravidão e ao racismo estrutural que permeia as instituições e políticas públicas do país. Conforme destacado por Fraser (2003), a ausência de um reconhecimento cultural pleno e de uma redistribuição econômica eficaz compromete a superação das injustiças raciais e sociais enfrentadas pela população negra. Miranda (2025) complementa essa análise ao enfatizar que as leis e práticas institucionais historicamente excludentes e discriminatórias foram fundamentais para a manutenção dessas desigualdades, perpetuando a marginalização e limitando a participação política plena dos negros brasileiros. Portanto, para que o Brasil avance em direção à justiça social, é imprescindível que os movimentos sociais e as políticas públicas integrem simultaneamente o reconhecimento das especificidades culturais e a redistribuição material, alinhando-se a uma estratégia que reconheça a complexidade das lutas por igualdade racial e socioeconômica.
Referências
IBGE. Em 2022, analfabetismo cai, mas continua mais alto entre idosos pretos e pardos e no Nordeste. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37089. Acesso em: 15 jun. 2025.
FRASER, Nancy. La justicia social en la era de la política de la identidad: Redistribución, reconocimiento y participación. In: HONNETH, Axel; FRASER, Nancy. Redistribución o reconocimiento? Un debate político filosófico. Tradução de Pablo Manzano. A Coruña, Madrid: Fundación Paideia Galiza, Ediciones Morata, 2006 [2003], p. 17-88.
JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. 1. ed; São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MBEMBE, Achille. Necropolítica:biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.Tradução Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
MIRANDA, Antonio. A parcial cidadania de pessoas negras no Brasil. In: XAVIER, Seu João (org.). Encruzilhadas culturais: arte, corpo e resistência. Belo Horizonte: Editora SJX, 2025. p. 32–52.
SANTOS, Theotônio dos. Teoria da dependência – balanço e perspectivas. Florianópolis: Insular, 2015, p. 15-62.
Como citar este trabalho:
MIRANDA, Antonio; FLAVIANO, Ian Novaes. Uma análise do racismo brasileiro através das lentes de Nancy Fraser: redistribuição e reconhecimento. Publicado em 23 jun. 2025. Disponível em: https://www.seujoaoxavier.com.br. Acesso em: 23 jun. 2025.
[1] Antonio Miranda – Graduando do 3º períododo Curso Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Email: antoniomirandasilva33@gmail.com
[2] Ian Novaes Flaviano – Graduando do 3º períododo Curso Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Email: ian53@ufmg.br
Como citar este trabalho:
MIRANDA, Antonio; FLAVIANO, Ian Novaes. Uma análise do racismo brasileiro através das lentes de Nancy Fraser: redistribuição e reconhecimento. Publicado em 23 jun. 2025. Disponível em: https://www.seujoaoxavier.com.br. Acesso em: 23 jun. 2025.