Do quarto de despejo ao Torto Arado: a estética do poder
Do quarto de despejo ao Torto Arado: a estética do poder
02 de setembro de 2025
Eu não gosto de cará. Acho uma enganação da batata inglesa, que para mim é muito mais saborosa, versátil, pode ser preparada frita, cozida, assada, em purê, em cubos, em palito, no espeto, rústica, enfim, uma infinitude de maneiras. Há quem concorde comigo. Há quem discorde. Há quem goste do cará e poderia falar algo parecido com relação ao cará e inspirar receitas, métodos de preparo. Há quem não ligue e não queira sequer “perder” ou “investir” tempo nessa discussão. Mas e daí? Por que um professor linguista e sociólogo, formado em Letras pela UFMG, mestre e doutor em linguística e linguagens, parou para escrever sobre batatas e cará?
Não. Esta conversa não é sobre tubérculos, legumes, culinária e gastronomia. É uma conversa sobre preconceitos e raiva. Ou melhor, talvez eu devesse usar outro significante e não revelar de cara os significados por trás das minhas palavras. Vamos dizer que este texto é sobre quando o reflexo que vemos no espelho não desvela a imagem que fazemos do que é arte, cultura, belo... esteticamente aceito e desejável para nossa sociedade, que idealiza monocromaticamente, na maioria das vezes, o que é e o que não é, o que pode e o que não pode, quem pode e quem não pode.
No dia 30 de agosto, a professora Aurora Bernardini publicou na Ilustríssima, coluna da Folha de São Paulo, um texto que se ocupava em reconhecer que os assuntos e conteúdos das obras de Itamar Vieira Jr. são interessantes, mas que, estilisticamente, não são literatura. Nada novo debaixo do sol. Curiosamente, esse pensamento não é novo. Em 2017, na Academia Carioca de Letras, um evento lindo e chiquérrimo foi organizado para homenagear Carolina Maria de Jesus, autora do Quarto de despejo, catadora que virou escritora e deu o nome na década de 60.
Em meio ao deleite do evento, entra em cena o professor Ivan Cavalcanti Proença, aquele senhor que adora uma polêmica. Ele simplesmente jogou na roda que Carolina não é literatura. Disse que o livro dela é só diário, relato cru, “coisa de quem não tinha condições de existir por completo” (sim, ele falou isso em voz alta, num microfone, com todo mundo ouvindo). E para destampar a caixa de Pandora totalmente, ainda contou que uns intelectuais de SP já diziam: “Se essa mulher escreve, qualquer um pode escrever”. Bom, essa mulher não apenas pode escrever como também pode ser traduzida para mais de 18 idiomas, e sua obra é lida ao redor do mundo, com inúmeras teses e dissertações a partir de sua obra.
Curiosamente, o Diário de Anne Frank não enfrenta essas falas, pois não há dúvidas de que o Holocausto judeu foi um crime organizado, sistemático, que levou ao assassinato de cerca de 6 milhões de judeus, um genocídio concentrado numa execução industrial entre 1941 e 1945. O mundo conhece, respeita, estuda, presta homenagem. Há memorial, museu, literatura, escolas que ensinam: todos entendem a tragédia, o horror e a necessidade de lembrar. Se veem naquelas pessoas de pele alva e olhos claros. Olga, interpretado por Camila Morgado, é um dos meus filmes favoritos.
Agora, a escravidão afrodiaspórica e o genocídio negro no Brasil, um crime prolongado por séculos, é tratado com indiferença escandalosa. Até hoje, negros precisam lutar por direitos básicos como viver com dignidade, ir e vir sem medo, entrar num supermercado sem ser constrangido só por sua cor, torcer para não ser assassinados pela polícia. E essa luta não é por privilégio: é por sobrevivência.
Os números são brutais. Em 2023, 35.213 pessoas negras foram assassinadas no Brasil, representando cerca de 77% das vítimas de homicídio no país. Proporcionalmente, é 2,7 vezes mais provável que um negro seja morto do que uma pessoa não negra. Entre 2012 e 2022, morreram 445.442 negros, média de uma pessoa negra assassinada a cada 12 minutos.
Abdias Nascimento já denunciava esse processo como um “genocídio do negro brasileiro”, afirmando que “a escravidão e o racismo são as duas maiores feridas da história do Brasil, mantidas abertas por uma política de extermínio disfarçado” (O genocídio do negro brasileiro, 1978). Sueli Carneiro, ao tratar da necropolítica cotidiana, lembra que “o racismo é a engrenagem que hierarquiza vidas e distribui a morte” (Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, 2011). Achille Mbembe aprofunda a análise ao afirmar que vivemos sob uma política de morte, onde “o poder se define pela capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (Necropolítica, 2003).
Se esses números fossem tratados com o mesmo horror e memória que o Holocausto recebe, com museus, educação, memória oficial, talvez não estivéssemos aqui exigindo até o mínimo: poder viver, andar sem medo, acessar o espaço público, ter beleza, arte, literatura reconhecida e respeitada. Porque o que produz a comunidade negra muitas vezes não é visto como arte, cultura ou literatura, mas é menosprezado, invisibilizado, delegitimado.
Vivemos num país onde a dor negra é invisível e banalizada, enquanto a dor judaica é universalmente reconhecida. Essa desigualdade de memória e atenção social não é só política: é violência simbólica que perpetua o genocídio.
Bernardini, Proença e outros se sentem à vontade para decretar o que é e o que não é literatura com a mesma tranquilidade daqueles que decretam quem pode ou não produzir, fruir e existir. São tantas camadas de análise sociológica e histórica nesse debate que fica fácil vermos quem ainda tem o controle das narrativas, as chaves dos grandes grupos editoriais, quais vozes são ouvidas e quais são sistematicamente silenciadas. De certa forma, é fácil mapear de onde vem essa indignação com relação ao que se produz em mãos pretas. Afinal, mesmo figuras canônicas como Machado de Assis tiveram de cortar um dobrado até serem reconhecidas como parte do cânone. Negro, pobre, autodidata, Machado enfrentou preconceito e silenciamento, sendo muitas vezes embranquecido pela crítica e pela iconografia oficial para que pudesse caber na moldura do “gênio universal” que o Brasil vendia ao mundo.
O caso de Luiz Gama é ainda mais explícito. Filho de uma mulher negra livre e traficada ilegalmente de volta à escravidão, foi ele mesmo vendido como escravo pelo próprio pai aos dez anos de idade. Autodidata, advogado brilhante sem diploma formal, poeta e jornalista, Gama usou sua pena e sua oratória para libertar centenas de pessoas escravizadas. No entanto, sua obra literária foi sistematicamente rejeitada por muito tempo. Durante décadas, permaneceu marginal, com críticos reduzindo-o à condição de agitador político ou satirista menor. Morreu em 1882, com a saúde devastada, acusado de “beber demais” e marcado pela desvalorização intelectual. Hoje, ironicamente, é celebrado como patrono da abolição e um dos maiores nomes da literatura e do pensamento jurídico-político brasileiro. Sua revalorização recente revela o quanto a crítica literária e acadêmica falhou em reconhecer, em vida, a grandeza de um homem negro que afrontou o sistema.
Da mesma forma, Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista negra do Brasil e autora do romance Úrsula (1859), foi praticamente apagada da história literária nacional. Mulher, negra, professora em tempos de escravidão, ousou publicar uma obra que denunciava o regime escravista e expunha a brutalidade da condição das mulheres negras. Sua escrita antecipava debates sobre gênero, raça e opressão, mas permaneceu ignorada por mais de um século. Somente em meados do século XX e, com mais força, no século XXI, começou a ser resgatada como pioneira. Quando me formei na UFMG, em 2012, seu nome não fazia parte do currículo acadêmico e temo que ainda hoje seja negligenciado em muitos cursos de Letras, que seguem reproduzindo um cânone branco, masculino e eurocentrado.
O mesmo padrão se repete em outros campos: na música, onde a produção negra foi tratada como folclore ou “cultura popular” inferior, até ser apropriada e higienizada pela indústria cultural; nas artes plásticas e visuais, onde artistas negros tiveram de disputar espaços sempre marcados por racismo institucional; nas ideias e epistemes, onde intelectuais negros foram sistematicamente excluídos das universidades, dos currículos e dos debates oficiais. A lógica é a mesma: o que é produzido por mãos pretas precisa sempre ser justificado, traduzido, reconhecido “apesar de”, como se a genialidade só pudesse ser validada quando embranquecida ou redescoberta tardiamente pela crítica oficial.
Talvez não seja 100% descartável a opinião dos Proença e Bernardini. Talvez realmente esses autores, eternizados ou contemporâneos, não tenham produzido e não produzam apenas literatura. Talvez essa capacidade de transformar dor, abandono, tortura, escravização, privação e trauma em algo capaz de retratar a existência de milhões de pessoas seja uma gradação acima do que o academicismo deles consegue alcançar.
Como escrevo em meu livro Racismo Estético: decolonizando mentes e práticas educativas: “Como vimos, a colonização não se limitou ao território e à economia. Ela também moldou a forma como nos vemos, como enxergamos o outro, e até como percebemos o que é belo. Decolonizar a mente é libertar-se dessas correntes invisíveis. A estética colonial não celebra a diversidade, mas sim impõe um ideal que marginaliza o que é nativo, o que é negro, o que é indígena. Desconstruir esse padrão é um ato de resistência. Assim, entendo que decolonizar a mente é romper com a ideia de que beleza tem um único padrão, é rejeitar as normas estéticas impostas que desvalorizam tudo o que foge à régua eurocêntrica. A estética, muitas vezes incompreendida em sua amplitude, é vista como superficial, quando na verdade é um dos pilares mais fortes da manutenção do racismo. Quando aceitamos apenas o que o colonizador definiu como belo, perpetuamos sua visão de mundo.
O racismo estético é uma violência que oculta a riqueza das culturas negras e indígenas, e ao desconstruí-lo, estamos reconfigurando nosso olhar e abrindo espaço para novas narrativas de beleza. Enquanto o racismo persistir, a promessa de uma democracia plena continuará a ser uma ilusão. A mudança real não virá de maneira passiva, mas sim através de uma luta constante e consciente. “Eu não espero que o racismo acabe por si só. A luta precisa continuar” (Abdias do Nascimento).
Eu já disse que não gosto de cará. Mas, convenhamos, seria uma idiotice afirmar que cará não é comida. Ele é rico em conteúdo, tem seu valor. Só que gosto é gosto. No fim das contas, como já se disse, ao vencedor, as batatas... e isto aqui não é sobre legumes.
Prof. Dr. Seu João Xavier – Professor efetivo do Departamento de Linguagens e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Linguista e Sociólogo – Mestre em Linguística Aplicada (UFMG) e Doutor em Estudos de Linguagens (CEFETMG). Autor de Racismo Estético: decolonizando mentes e práticas educativas; além de livros de crônicas.