O homem de calcinha
O homem de calcinha
Os homens não gostam de mulheres.
Se você é homem, provavelmente, você não gosta das mulheres.
As civilizações ao redor do mundo não gostam das mulheres. Apenas aturam essas criaturas resilientes que sobreviveram a todas as nossas tentativas de acabar com a raça delas. Uso, aqui, o termo raça emprestado das mesmas pessoas que criaram “a raça negra”.
Deixe-me te convencer de que você não gosta de mulheres. Você está sozinho em casa e enquanto caminha pela sala chuta aquela quina da parede com o pé descalço. A dor que te atinge como um coice no estômago, faz você gritar, bem alto, um palavrão. Mano, o que você gritou? O que as pessoas, tradicionalmente, costumam gritar quando estão com raiva de algo ou estão brigando com alguém? Vai pensando aí...
Bom, errantemente pelo instagram, entre curtidas e stories, deslizei para um vídeo publicitário que oferecia aulas de música. Amo cantar e teve uma época em que queria muito fazer aulas de canto. Assisti com atenção a oferta, as técnicas que seriam ensinadas e os materiais disponibilizados. Estava totalmente envolvido até que uma frase apareceu na tela, como argumento final da venda das aulas para o público masculino: “o seu belting (que é uma técnica vocal) usa calcinha?”
Após esse questionamento, o preparador vocal seguiu com sua oferta que não mais me interessou. Além do mau gosto publicitário, essa frase esconde uma atitude comum que muitas vezes passa desapercebida.
Biblicamente, criadas para serem auxiliadoras dos varões e genitoras de seus filhos, os papéis atribuídos às mulheres, desde muito tempo, têm sido aqueles de inferiorização social, servidão e uma objetificação que transita entre ser a propriedade de um homem ou seu utilitário de prazer sexual.
Responsabilizada, segundo a mitologia cristã, pela queda do homem, as dores biológicas do parto foram um castigo divino providencial para vingar uma atitude tomada em livre-arbítrio. Perseguidas e queimadas nas fogueiras da era medieval, entre os séculos V e XV, acusadas de bruxaria ou de libertinagem – o que me faz questionar: essa libertinagem era praticada com quem? Por que só as mulheres eram responsabilizadas por ela? – Acredito que tenha sido em algum momento dessa época que o famoso xingamento (que em sigla é composto por três letras) tenha surgido. Culpa da mãe!
Veja bem, mesmo aquela mulher que escapou do assassinato até o século XVI e que exercia uma fé cristã-cidadã-de-bem não poderia entrar na igreja, congregar ou cantar em público na Itália. Uai! Esse impedimento do Papa Sisto V causou problemas, principalmente, nas óperas religiosas. Como os corais continuariam a ter suas divisões vocais de vozes mais finas – sopranos - se as vozes dos meninos engrossavam devido à puberdade? O ódio contra as mulheres foi tão grande que ao invés de permiti-las em seus corais, a solução encontrada foi a castração dos meninos antes da mudança vocal para que pudessem manter vozes finas nos corais das igrejas. Créu no bililiu.
Com a modernidade, a partir do Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, a situação ficou um pouco mais elaborada, mas as diversas proibições sociais continuariam: estudar? Não! Voto? Não! Trabalhar? Não! Sentir prazer? Não! Ser dona do próprio corpo? Não! Dizer não a um homem? Não! São vários acúmulos de proibições que historicamente comprovam a minha certeza, os homens odeiam as mulheres.
Qual foi uma das primeiras proibições de Hitler, na Alemanha, e dos governantes Sul-Africanos durante o regime do apartheid? Controlar o corpo das mulheres e dizer com quem elas poderiam ou não se relacionar. Hoje, as mesmas discussões primitivas e simplórias sobre o direito de as mulheres tomarem decisões com relação ao seu próprio corpo continuam sendo feitas por nós, homens, que nos balizamos religiosamente, graças a DEU$, para decidir a respeito de uma experiência biológica da qual somos meros espectadores, por exemplo o aborto; isso quando não sumimos covardemente para não assumirmos nossas responsabilidades paternas. Saímos para comprar cigarros em Marte para nunca mais voltar.
Nós as assediamos nos espaços públicos, ônibus, mercado de trabalho. Pagamos salários menores e incompatíveis com suas qualificações, mesmo quando desempenham a mesma função que nós. Tentamos, com as melhores das intenções, explicar coisas óbvias para elas, por exemplo, quando elas têm uma ideia e repetimos a ideia delas para elas mesmas como se fossem nossas. Tenho um causo para ilustrar isso.
Uma moça respondeu ao anúncio no qual vendia meu carro. Marcamos e ela veio conversar comigo. Disse que era engenheira mecânica e que trabalha para uma das indústrias aqui da região. Queria trocar de carro e o meu parecia atendê-la. Por isso, fez um test-drive, gostou e combinamos de fechar negócio no dia seguinte. Na hora marcada, ela veio acompanhada de seu pai. Até aí tudo bem, eu sempre que posso vou com meu irmão, que é mecânico, para ter uma segunda opinião quando o assunto é veículo. No caso da moça, a presença do pai não era por um conhecimento específico dele. Era porque, segundo as palavras do pai, “já viu mulher, né? Não sabe de nada”. Discordando, respondi que, definitivamente, não parecia ser o caso da filha dele que é formada pela UFMG em engenheira mecânica e trabalha para uma empresa multinacional. Ela sabia mais do que ele e eu juntos. Ela segurou o riso. Se diminuímos as mulheres até mesmo quando são as nossas filhas e descreditamos seus feitos e desacreditamos em seu potencial, fica evidente que a gente não gosta mesmo de mulheres.
Finalmente, a prova cabal é que as nossas atitudes são justificáveis, aceitáveis, esperadas e normais, mas quando as mulheres fazem exatamente o que fazemos isso dá um B.O. para elas.
Se são solteiras convictas e preferem sua própria companhia a estarem em relacionamentos fixos, nós as chamamos de quê? Se elas pegam e não se apegam ou se querem apenas algo casual com alguém, nós as taxamos de quê? Se usam uma roupa curta são chamadas de quê? Nós podemos tirar fotos sem camisa no instagram, mas as mulheres não podem sequer exemplificar, em um vídeo, como o exame do toque deve ser feito para prevenir o câncer de mama. Nem mesmo de bikini, o instagram aceitou o vídeo. Se são mães, são atacadas ao amamentar a criança em público. Se ganham dinheiro e são competentes, estão dando para o chefe. Se têm opiniões ou temperamentos fortes estão de tpm. Se são mandonas, certamente são mal-amadas ou mal-comidas (por quem? Nunca nos perguntamos, né? Não é sobre nós...).
A verdade é que não estamos à altura de muitas dessas mulheres que na história brasileira e mundial foram capazes de atos de coragem, altruísmo, dedicação e empatia que a nós homens nos faltam. Nunca vi duas mulheres se engalfinharem no trânsito dando socos e pontapés porque a outra não deu espaço para uma ultrapassagem. Nunca vi uma mulher fazendo pega em carros de luxo em alta velocidade e matando alguém.
A propaganda do instagram perguntou se o meu belting usa calcinha. Vejamos, Alcione, Elza Soares, Ivete Sangalo, Margareth Menezes, Marisa Monte, Marilia Mendonça, Vanessa da Mata, Liniker, uma infinidade de cantoras excepcionais “beltam” muito, além de serem produtoras, compositoras, empresárias, mães e usarem muito a inteligência delas para não passar vergonha, por aí. Sem contar todas as outras mulheres que têm marcado esta geração trazendo transformações sociais, intelectuais, políticas, econômicas e culturais de várias formas.
Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP, e Jaqueline Goes de Jesus tiveram um papel essencial no sequenciamento do novo coronavírus, realizado em colaboração com pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz (IAL), da Universidade de Oxford e do IMT-USP. A equipe das meninas conseguiu divulgar a sequência completa do genoma viral apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso da doença no Brasil, em 26 de fevereiro. Tem a Nise da Silveira, do Rio de Janeiro, uma psiquiatra revolucionária que transformou o tratamento da saúde mental no Brasil, usando artes e terapia ocupacional em vez de métodos agressivos. A Celina Turchi, de Pernambuco, uma biomédica que desempenhou um papel crucial ao estudar a ligação entre o vírus Zika e a microcefalia, ajudando a entender essa condição grave. Essas mulheres deixaram marcas importantes na ciência e melhoraram a vida de muitas pessoas. Será que é a calcinha o fator que ativa o cérebro dessas mulheres e faz tudo isso acontecer? Uau! Se for simples assim recomendo veementemente: homens, vamos nos apropriar dessa peça íntima. Homem de calcinha, JÁ!