A céu aberto
A céu aberto
Seu João Xavier
A céu aberto
O sistema político brasileiro é pautado na democracia. Essa palavra é a junção de dois conceitos: DEMOS, que em grego significa “povo ou distrito” e KRATOS, que se refere ao “domínio ou poder”, ou seja, o “poder do povo” ou “governo do povo”.
Temos um regime político chamado de presidencialismo que se insere no modelo de república federativa, formada por quatro instituições: a União, que atua como se fosse o “Passaporte do Brasil” diante dos outros países, o Distrito Federal, os estados e municípios. Todas essas instituições precisam cumprir as leis promulgadas, isto é, estabelecidas na constituição federal. A nossa tem sido escrita desde 1988.
Vamos lá, o Brasil é dividido em 26 estados e o Distrito Federal, ao todo são 27 unidades federativas que possuem governadores que lideram e administram essas unidades com a ajuda de deputados estaduais, responsáveis pela proposição de leis. Há, ainda, os prefeitos que cuidam das cidades com a ajuda de vereadores que pensam e, na câmara municipal, discutem formas de legislar, ou seja, de organizar a vida nas cidades.
Trocando em miúdos, suponhamos que a cidade de Timóteo-MG, onde residi até 2023, tenha um problema grave com relação à poluição do ar e dos rios que serpenteiam a cidade e à falta de saneamento básico – praticamente, inexistente em vários bairros – e, ao mesmo tempo, os cidadãos estejam pagando 100% de taxa de esgoto sobre o valor do consumo de água. Imaginou?
Cientes disso, a população da cidade se organiza e vai à câmara municipal para apresentar aos vereadores uma demanda por um projeto de lei municipal que responsabilize as grandes indústrias e usinas ao redor da cidade e exija a implementação de um plano de ação que vise a diminuir os impactos ambientais: as cinzas e as fuligens que os fornos e chaminés liberam no ar, bem como os dejetos químicos depositados no Rio Doce e no Rio Piracicaba que foram transformados em esgoto a céu aberto.
Os vereadores, idealisticamente, acolhem essa demanda na câmara, discutem as melhores propostas para defender os interesses da população (que os elegeu para que representassem o interesse público) e encaminham esse projeto para a prefeitura da cidade.
O prefeito, ao receber essa demanda, decide o que fazer. Ele tem duas opções: a primeira é fazer o melhor para a cidade e a segunda é fazer o melhor para o lucro e as boas relações com os donos das empresas. Baita dilema, né? A quem agradar? Uma escolha tem que ser feita e mesmo a omissão diante de uma escolha já se configura uma escolha, sabemos.
Em alguns casos, o prefeito leva essas demandas do município aos deputados estaduais que atuam na Assembleia Legislativa (AL). Em Minas Gerais, a AL está localizada em Belo Horizonte. Os Deputados Estaduais eleitos pelos municípios mineiros discutem o projeto encaminhado pelas prefeituras, votam e apresentam ao governador as demandas que podem ser aplicadas também aos outros municípios como políticas públicas estaduais.
O governador, bem como o prefeito, escolhe o que fazer: defender o interesse dos cidadãos que o elegeu ou os grandes empresários? Caso entenda que o que precisa ser feito pode ser aplicado em outros estados, ele encaminha a proposta aos Deputados Federais que se reúnem na Câmara dos Deputados, em Brasília, e lá representam os estados que os elegeram.
Como podemos ver, uma ação local iniciada na cidade de Timóteo pode passar pela câmara dos vereadores, para chegar ao prefeito, para chegar aos deputados estaduais, para chegar ao governador, para chegar aos deputados federais para, talvez virar uma lei de âmbito nacional, sancionada pelo governo federal, na pessoa do presidente da República. Esse processo todo exige muita inteligência, ética e preparo de todos os envolvidos, certo? No entanto, quem são esses representantes e quão preparados eles estão para defender o desejo e o interesse da população?
Todos esses políticos são Servidores Públicos. Ocorre que, diferentemente, de outros cargos públicos, não há um concurso que exija uma preparação para assumir esse encargo. Podem se candidatar quaisquer cidadãos brasileiros que tenham pleno exercício dos direitos políticos, ou seja, terem atingido a maioridade.
Eu sou servidor público: professor. Para conquistar esse cargo, precisei ler uma bibliografia de dez textos, cobrados em uma das fases do concurso que prestei: seis livros e quatro artigos; realizei uma prova escrita, depois uma prova didática, apresentei um currículo que listava as minhas experiências profissionais, qualificação acadêmica e precisei comprovar cada uma delas por meio de certificados e diplomas. Entendo, perfeitamente, a importância desse processo burocrático que organiza nossa sociedade, pois para formar pessoas é importante que eu saiba o que estou fazendo, como fazer isso, os mecanismos mais adequados e os porquês.
Preciso, ainda, anualmente, justificar os meus encargos acadêmicos, escrever artigos sempre que possível, publicar resultados de pesquisas e estudos, participar de eventos que expandam os meus horizontes profissionais e, periodicamente, ser avaliado por meus colegas de trabalho, nos quesitos: frequência, comprometimento, atualização profissional e desempenho das atividades. Não recebo auxílios moradia e terno. Não recebo auxílio saúde. Se for à farmácia tenho que pagar por qualquer medicamento que precise. Não tenho auxílio material de escritório e muito menos assessores acadêmicos.
Questiono: por que as pessoas podem se candidatar aos cargos públicos nas câmaras e prefeituras sem ter qualquer exigência com relação às suas formações e experiências prévias com questões públicas e do Estado? Por que para trabalhar para o Estado é necessário ser altamente qualificado e estar em constante formação, mas para compor o Estado qualquer coisa vale? Por que as pessoas que desejam legislar e propor soluções para os problemas ambientais, educacionais, de saúde pública e urbanos, que afetam a população inteira de um município ou estado, são menos cobradas com relação às suas capacidades de ocuparem aqueles cargos que um professor ou os servidores do SUS, por exemplo, que precisam realizar um concurso público para se elegerem? Você já se questionou quais são os impactos que isso acarreta sobre as nossas vidas e para o tipo de política que é feita?
Eu não quero mais um candidato despreparado, que olha para o pobre e o veja como miserável e aja como se essa pessoa precisasse de sua salvação “à la jesuítas”. Não precisamos de candidatos homofóbicos, racistas, amigo de criminosos-milicianos, que vivam em bolhas de privilégios sociais. Qual é a utilidade de um candidato que parasita o sistema político e é uma ameba intelectual? Houve até um rumor de que teríamos um candidato playboy, simplório e que acha que o pobre brasileiro precisa de reformar uma “lata velha” e assim estaria tudo resolvido, ou seja, um negacionista das desigualdades e das violências que ocorrem, diariamente, no Brasil. Esse, sem dúvida, seria o candidato que já fecha os olhos para o terrível racismo e exclusão social aos quais estamos sujeitos neste país. Um caldeirão do Horror! Não quero “artistas” ou celebridades na política. Vou te contar o que desejo.
Quero mesmo é uma pessoa que entenda de periferia, que saiba que aumentar R$0,15 centavos no preço da passagem pode custar o pão das crianças; que já tenha precisado do SUS; que defenda e que seja grato à escola pública e aos professores que nela atuam; que saiba o que é ficar vigiando a tela do monitor do caixa no supermercado para ver se o dinheiro vai dar; que entenda das relações socioeconômicas e como o racismo é estrutural e cruel. Alguém que lute para combater essa discriminação e não tenha medo de denunciá-la. Um candidato ou candidata que esteja buscando se formar cada vez melhor e estar preparado para entender a sociedade e, assim, propor mudanças que possam reduzir essas disparidades, incluir os que estão às margens e promover um estado de bem-estar social não como “um privilégio” de poucos, mas como um direito de todos e todas. Já descobrimos que política não é lugar de palhaços e nem o ambiente apropriado para pessoas que desconheçam a história do país, negacionistas das descobertas científicas ou que estejam prestes a cair das bordas da terra plana.
Da política, as vidas das pessoas dependem. Esse negócio de que “política, religião e futebol não se discutem” foi inventado para te controlar. Se você entende política, você não vai aceitar que leis sejam feitas para te prejudicar. Se você entende as religiões, você as respeita como aspecto cultural e pertencente ao foro privado, isto é, à sua vida particular. Ela não deve ser utilizada para balizar a vida pública. Isso acontecia oficialmente até a Idade Média. Na Modernidade a gente tem a esperança de um Estado laico, apesar de em alguns lugares ainda vermos a religião ditando a vida pública, infelizmente.
Por fim, quando você entende que o futebol é apenas um esporte e não uma razão para as pessoas se ferirem com rojões e brigas de torcidas organizadas, você passa a enxergar a sociedade com lentes mais críticas e entende que o jogo que tem o verdadeiro valor é o jogo político que está destruindo nosso país, devastando as nossas florestas, envenenando as nossas comidas, exterminando as populações periféricas e tirando a nossa a paz.
Tudo que você precisa saber sobre política é que ela está em todo lugar: desde a água que você bebe aos 100% de taxa do esgoto que você paga, mas que corre a céu aberto em seu bairro."
Crônica: A céu aberto
Livro: O homem de calcinha - Seu João Xavier